O Guardião da Memória


Local tradicional do túmulo do apóstolo João em Éfeso


O sol poente tingia as colunas coríntias do Templo de Ártemis de dourado e púrpura, lançando sombras alongadas sobre as ruas de pedra de Éfeso. Entre o burburinho do mercado, barracas vendiam grãos, especiarias e tecidos finos, e o aroma de incenso se misturava ao sal do porto, onde navios carregavam oliveiras, vinho e cerâmica.

O velho João caminhava lentamente, apoiado em seu bastão de madeira gasta. Cada passo ecoava nas ruas pavimentadas, marcando o ritmo de uma memória que atravessava eras. Uma criança o seguia, olhos curiosos refletindo as cores do crepúsculo e as chamas distantes das tochas do porto.

— João… você viu Jesus mesmo? — perguntou a criança, com a voz tremendo entre o fascínio e o medo.

João parou e olhou para o horizonte, onde as ondas batiam nas embarcações, cintilando como prata ao sol.

— Vi, menino. Caminhei com Ele pelas colinas da Judeia, toquei seu manto, ouvi suas palavras que eram vida e amor. — Seus olhos se encheram de lembrança e dor. — Fui o único que permaneceu à cruz, e Ele confiou a mim sua mãe. A cruz, a dor… tudo se tornou uma luz que ninguém mais pode apagar.

Eles seguiram por uma rua estreita, ladeada por casas de tijolos e pátios internos com flores silvestres. Alguns artesãos moldavam cerâmica, outros afiavam facas em oficinas improvisadas, alheios à presença do apóstolo.

— E depois, João? — perguntou a criança, olhando para a cidade que parecia viva, mas diferente do mundo que o velho descrevia.

— Depois vim para Éfeso. — Ele apontou para as sete igrejas da Ásia Menor, espalhadas como pontos de luz no coração do império. — Aqui ensinei, escrevi, amei… e mesmo agora, neste fim de dia, ainda vejo o mundo antigo respirando em cada pedra e cada rosto. — João sorriu, mostrando a sabedoria de quem viu séculos passarem. — Escrevi cartas, visões do Apocalipse… mas tudo isso é apenas sombra do que vivi com Ele.

A criança se aproximou do porto, olhando os navios que balançavam suavemente.

— E você acredita que as pessoas vão se lembrar de você, João?

O apóstolo tocou a mão pequena da criança e respondeu com um brilho de eternidade:

— Alguns sim, muitos esquecerão. Nosso dia é 27 de dezembro, entre o Natal e o Ano Novo, quando todos estão ocupados com festas e fogos. Mas aqueles que guardam o amor de Jesus, que vivem a fé com o coração, nunca esquecerão. Eu sou apenas uma ponte… um último elo entre Jerusalém, o Templo destruído, e vocês, que vivem em um mundo diferente.

Eles caminharam pelo mercado, entre mosaicos coloridos, estátuas de deuses e o som distante de músicos ensaiando para festivais. Cada passo de João era uma história, cada gesto um ensinamento, e a criança sentia que caminhava por séculos em poucos metros.

Ao final do dia, João parou diante de uma colina, olhando Éfeso inteira: as ruas, o porto, o Templo de Ártemis e as casas iluminadas por tochas.

— Veja, menino — disse ele — o que foi vivido não desapareceu. Cada palavra de Jesus que guardei, cada lágrima e cada alegria, ainda vive em nós. Éfeso, Jerusalém… tudo se mistura no tempo e na memória. Nós somos o que permanece, mesmo quando o mundo muda.

E enquanto o sol desaparecia no horizonte, João continuava sendo o último contador de histórias, um avô espiritual, guardião de um amor que atravessava eras, lembrando que, mesmo que esquecido no calendário, seu dia permanece vivo naqueles que escutam e acreditam.


📝 Nota sobre o dia de João:

O dia 27 de dezembro, entre o Natal e o Ano Novo, celebra o apóstolo João. Apesar de muitas vezes esquecido pela maioria das pessoas, por cair em um período de festas e férias, ele simboliza memória, amor e fidelidade. É um lembrete de que João, o discípulo amado, testemunhou Jesus e transmitiu sua fé, permanecendo como ponte entre a igreja original de Jerusalém e o mundo que emergia em Éfeso e nas igrejas gentias.

📷: Julian Fong / Wikipédia, conforme extraído de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tomb_of_St._John.jpg#mw-jump-to-license 

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