Páscoa (“Pessach”) ― Como Estímulo ao Questionamento e a Conversa Franca



Por Levi B. Santos*

Que bom é continuar aprendendo, mesmo aos 72 anos de idade. Não sabia que, por ocasião dos jantares de PESSACH (A Páscoa, ou comemoração da fuga dos judeus da escravidão no Egito), as famílias judaicas se juntavam para desafiar uma criança a cantar o “Ma Nishtaná”, cuja tradução em nossa língua é: “Por que esta noite é diferente de todas as outras?” ― como revelou Jaime Spitzcovski (Jornalista da Folha e Integrante do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP), no começo de seu consistente ensaio “Judeus, Política e Mitos no Brasil” (Folha de São Paulo de 25 de março de 2019).

“Trata-se de momento revelador de traduções judaicas milenares. A escolha do mais jovem capaz de disparar dúvidas simboliza estímulo, desde a infância, ao questionamento” ― enfatizou o ensaísta da Folha, sobre esse inusitado significado do Pessach.

A Páscoa, como passagem de um lado tradicional para outro totalmente diverso, começa quando nos dispomos a ouvir de forma desarmada aqueles que nos questionam ou desafiam nossos rígidos conceitos. Conceitos apreendidos que, com o passar do tempo, se tornaram petrificados de um dogmatismo implacável. A visão mais aberta e dinâmica de Jaime Spitzcovski merece uma reflexão mais aprofundada, principalmente por nos tirar daquela defensiva zona de conforto a que nos acostumamos, como bem evidencia esse trecho do seu lúcido ensaio que, com os devidos créditos, aqui transcrevo: “os judeus não constituem comunidades monolíticas do ponto de vista ideológico. […] Existe em seu universo comunitário, gigantesco caleidoscópio de visões de mundo, de práticas religiosas e de ideologias políticas”.

Com relação a pluralidade de entendimentos dentro das comunidades judaicas no Brasil, ressaltou, Jaime Spitzcovski:


“Entre judeus brasileiros há bolsonaristas e petistas. Entre os americanos, há democratas e republicanos. Quem crê numa comunidade judaica atuando, no plano político e partidário, de forma homogênea, inspira-se lamentavelmente em mitos medievais”.


Aliás, foi a partir do início do século XVI, como efeito tardio da diáspora entre as tribos de Javé, que o êxodo de judeus de Portugal para as Terras de D. João VI se tornou bem mais intenso (Vide “Breve História dos Judeus no Brasil” ― de Salomão Serebrenick)

Mas voltemos ao Pessach e seu caleidoscópio de compreensões e incompreensões que, ainda hoje, continua sendo uma fonte inesgotável de aprendizado. Certo é, que releituras ou interpretações realizadas pelo viés do desprendimento e da simplicidade, nas entrelinhas do que os evangelistas escreveram, hoje, são bem vindas, mesmo sabendo que alguns da seara ortodoxa ou conservadora, não resistam em criticá-las de forma veemente.

A História da Igreja mostra que muitos (os hereges) pagaram com suas próprias vidas, por tentarem traduzir a linguagem coloquial dos evangelhos de uma forma que fosse entendida pelos fiéis, que mal conheciam o Latim.

Luiz Felipe Pondé (doutor em Filosofia pela USP, doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP e colunista da Folha de São Paulo), em seu recente artigo de 01 de abril do corrente ano, na Folha, traz à tona um personagem muito conhecido da igreja ― o Mestre Eckhart ―, condenado pela inquisição, em 1328, por traduzir a Bíblia do Latim para sua própria língua, a Alemã. Graças a sua audaciosa tradução, as narrativas em grego dos evangelistas passaram a ser transmitidas de forma mais humanística e menos carregada de cerimonialismos. 

Para Eckhart, o desprendimento e a intimidade que o ser humano podia ter com Deus era o que, de forma cristalina, mais interessava. Jesus falava em aramaico, que vem a ser o idioma ancestral do hebraico. Nos signos dessas línguas irmãs existia uma mesma raiz, e, dependendo do contexto e do intérprete, o que era verbalizado possuía múltiplos sentidos. Eckhart, como exímio estudioso do Hebraico, sabia que essa língua permitia a existência dos contrários dentro de uma mesma enunciação. Já diziam os antigos escribas: “quando se imprime alma às letras, o sentido de uma palavra pode revelar significações inteiramente insólitas”.

Foi na contramão do que a ortodoxia rígida entendia, que o Mestre Eckhart deu uma interpretação, por muitos de sua época, considerada herética. Lucas, em seu evangelho, conta que Jesus parou na casa das duas irmãs para descansar de “sua dura e atribulada vida pública”. Ambas receberam com alegria o visitante. Enquanto Maria se deixa ficar extasiada ou embevecida aos pés de Jesus, sua irmã, Marta, sem cerimonialismos (no dizer do filósofo L. F. Pondé: “sem se prender a êxtase nenhum”), corre para a cozinha, a fim de preparar um saboroso “café” para seu caro hóspede. A atitude mística/contemplativa de Maria contrastava com o lado humano/íntimo de Marta, diante de seu visitante. Afinal, o Verbo tinha se feito carne para habitar entre elas, e nada melhor que rolar um papo entre goles de chá ou café, antes do sono chegar. Marta, talvez, naquele momento, estivesse celebrando a amizade demasiadamente humana, interpessoal e franca. Como a singularidade da pessoa é algo próprio e intransferível, respeitemos o modo de ser de Maria que, de forma diversa de sua irmã, preferiu aproveitar aquele momento ímpar para cultivar ou extravasar seu lado místico/divinal.

Entretanto, na visão do mestre Eckhart, não existia ocasião melhor para se trocar ideias ou entabular uma conversa mais íntima com um amigo, que nos intervalos entre os goles de “café” que se toma de forma desprendida ou bem espontânea. Quem já se sentou à mesa de uma cafeteria para conversar bem à vontade com amigo(a)s, sabe exatamente o que quero aqui ressaltar.

A lógica do filósofo Eckhart era essa, que o polêmico professor Luís Felipe Pondé, tão bem expressou no seu inspirado texto ― “Intimidade Com Deus”― , publicado em sua coluna na Folha de S. Paulo de 01/04/2019. O seu ensaio é um presente e tanto para aqueles que quiserem esquadrinhá-lo com os olhos e o coração, na páscoa que se aproxima. O pequeno trecho, da sensata argumentação de Pondé, abaixo replicado (com os devidos créditos), não me deixa mentir:

“Ter intimidade com Deus não é ficar paralisada diante de sua beleza, mas sim trocar uma ideia com Ele, fazendo um cafezinho na cozinha, lavando uma louça”.


(*) Levi B. Santos é médico colposcopista e editor do blogue Ensaios & Prosas

OBS: Artigo publicado no blogue do autor em 09/04/2019, conforme consta em https://levibronze.blogspot.com/2019/04/pascoa-pessach-como-estimulo-ao.html

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