A transgressão dos falsos valores em favor da vida



"O Filho do Homem é senhor do sábado" (Lc 6:5)
"Que vos parece? É lícito, no sábado, fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer?" (Lc 6:9)

No capítulo 6 do Evangelho de Lucas, há dois episódios de controvérsia envolvendo Jesus, os fariseus e a interpretação sobre o quarto mandamento da lei divina - o Shabat.

Segundo a legislação mosaica, havia dois motivos básicos para o israelita praticar o repouso no último dia da semana: (i) o descanso e a benção de Deus após ter concluído a sua obra criadora, o que seria um argumento universal para os homens de todas as nacionalidades contemplarem a existência com base em Êxodo 19:11; e (ii) a libertação da escravidão egípcia de grande significação histórica para o povo judeu (Deuteronômio 5:15). Logo, podemos resumir que o Shabat reúne a celebração da vida e da liberdade, os dois bens mais caros para o ser humano.

Entretanto, nos tempos de Jesus, muitos já tinham perdido o entendimento sobre a razão da guarda dos preceitos bíblicos. No caso do sábado, o apego cultural-religioso havia se tornado tão excessivo que as pessoas já estavam se esquecendo da função maior da Lei divina que é dar uma instrução, orientação ou direção afim de vivermos melhor. Nunca para servir de instrumento opressivo contra o homem.

Conta o livro deuterocanônico de Macabeus que, pouco mais de um século antes de Jesus, houve um grupo de judeus que acabaram sendo exterminados porque recusaram a se proteger de um ataque inimigo em dia de sábado. Também a arqueologia nas terras palestinas descobriu informações sobre a existência de comunidades radicais de essênios na regão do Mar Morto onde houve membros que se recusavam até a defecar no dia de sábado. E, de acordo com a narrativa de Atos dos Apóstolos, a distância do local onde Jesus ascendeu aos céus até à cidade de Jerusalém é comparada à "jornada de um sábado", correspondendo a pouco mais de um quilômetro a quantidade máxima de passadas que as pessoas poderiam se deslocar no dia santo.

Muitos afirmam erroneamente que Jesus teria revogado o 4º mandamento do Decálogo e outros que, com sua ressurreição no domingo, operou-se uma substituição de dias. Só que nada disso consta na Bíblia e o que observo é uma nova maneira de se interpretar não somente o Shabat como todos os mandamentos dentro de uma perspectiva mais amorosa.

De modo algum o texto do livro de Lucas deve ser tomado como um anti-judaísmo e sim visto como uma oposição à religiosidade burra em geral. Questões como as que foram enfrentadas por Jesus seriam triviais para judeus liberais de quaisquer épocas. Nem entre os fariseus do final do segundo Templo parece ter existido uma unanimidade acerca do que seria permitido fazer aos sábados. Porém, todas as religiões têm os seus seguidores fundamentalistas e há quem culpe os livros sagrados por isso. No Israel atual, uma minoria ultra-ortodoxa opõe-se às visitas das mulheres judias ao Muro das Lamentações e alguns deles mais exaltados jogam até pedras nas ambulâncias que socorrem pacientes no dia santo.

Não vou falar tanto dos judeus radicais neste artigo. Antes prefiro comentar sobre as absurdidades do nosso meio cristão do que criticar especificamente aspectos de uma religião alheia. Não escrevo para arrancar aplausos do homem e, se sigo a Cristo, a causa do Filho do Homem indica o quanto devemos buscar a auto-reflexão voltada para nós mesmos e o grupo do qual fazemos parte. Tal desafio precisa ser encarado por mais que venhamos a ser rejeitados como indignos pelos próprios irmãos na fé.

Ora, o que significa ser o filho do homem "senhor do sábado"?

Neste primeiro episódio de controvérsia, os discípulos de Jesus foram repreendidos pelos fariseus por estarem colhendo e se alimentado de espigas num dia de sábado, sem fins laborativos mas sim conforme Deuteronômio 23:25 permite. Os religiosos censuravam-os por satisfazerem uma necessidade nutricional vendo ali com escândalo uma suposta quebra do mandamento. O Mestre, porém, lembrou-lhes sobre um acontecimento bíblico envolvendo Davi quando o grande herói de Israel e seus homens famintos, ao fugirem de Saul, foram procurar abrigo junto à comunidade sacerdotal (1 Samuel 21:1-6). Não achando outra coisa para comerem ali, só restavam os pães sagrados que eram de uso exclusivo do serviço do Templo (Lv 24:5-9):

"Deu-lhe, pois, o sacerdote o pão sagrado, porquanto não havia ali outro, senão os pães da proposição, que se tiraram de diante do SENHOR, quando trocados, no devido dia, por pão quente" (1Sm 21:6; ARA)

Manter a reverência pelos seculares mandamentos dos nossos ancestrais sempre será importantíssimo para a formação ético-espiritual do indivíduo. Porém, tal observância não pode se tornar um engessamento a ponto de ir contra às principais necessidades humanas de satisfação imediata e se tornar um atentado à própria vida. Foi a este respeito que acredito ter Jesus tomado posição. Jamais contra o Shabat.

No Evangelho de Marcos, texto que, provavelmente, já fosse conhecido pelos padres gregos autores de Lucas e de Mateus, a afirmação de que "o Filho do Homem é senhor também do sábado" vem precedida do ensino de que o repouso semanal fora instituído por causa do homem (Mc 2:27). Porém, na perspectiva do terceiro evangelho, o dito de Jesus ganha o sentido de que é possível interpretar a Lei divina contrariamente a uma visão restrita e fechada da letra, afim de ser alcançada a norma principiológica superior que é inspiradora das orientações contidas nos livros sagrados. E, na passagem de Lc 6:1-5, o Mestre está falando que o suprimento das necessidades alimentares deve prevalecer sobre uma proibição cultural estúpida, a qual nem ao menos permite que a pessoa prepare sua própria refeição.

No trecho de Lucas 6:6-11, a polêmica em torno de Jesus torna-se ainda maior e marca o início do momento em que o Mestre passará a ser odiado pelos religiosos de seu tempo e não apenas criticamente supervisionado. Ao entrar numa sinagoga em dia de sábado, o Senhor não recusou conceder a cura a um homem que tinha a mão direita ressequida. Fez parte de seu ensino, naquela ocasião, restabelecer a saúde de quem não a tinha totalmente, dando um sentido ao Shabat ali comemorado.

É certo que as mentes julgadoras daqueles fariseus ali presentes não foram capazes de compreender o benefício feito a um homem doente permitindo-lhe celebrar a vida e a liberdade com a alegria plenamente restaurada numa igualdade de condições com os demais devotos. Então, sabendo como aqueles teólogos de pensamento petrificado iriam interpretar o fato, Jesus adiantou-se em responder com sábias indagações como já citado:

"Que vos parece? É lícito, no sábado, fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer?"

Quantas vezes os religiosos cristãos de hoje não fazem dos mandamentos e obrigações eclesiásticas pretextos para se omitirem?!

Quando deixamos de atender  um necessitado posto por Deus em nosso caminho para não nos atrasarmos para um culto devocional, será que a frequência às atividades da igreja não se tornou uma vil desculpa para deixarmos de fazer o bem a alguém? Vejam, meus caros leitores, que já estou saindo da questão específica da guarda do sábado, a qual não é mais tão polêmica em nosso contexto de vida, para aplicarmos a essência daquele ousado ensino de Jesus a outros campos da vivência cotidiana. Acrescento que, nas áreas de estudo do Direito, é vasto o terreno onde leis novas e velhas podem ser instrumentalizadas conforme o princípio maior da dignidade da pessoa humana que move a nossa Constituição e todo o ordenamento jurídico pátrio. Aliás, eu poderia identificar tal norma com o amor de Cristo.

Antes de concluir, quero buscar corrigir uma injustiça histórica do cristianismo em relação ao Shabat que acabou importando no trágico rompimento do quarto mandamento pela Igreja. Nem me refiro tanto à mudança do dia santo para o domingo, mas sim do esvaziamento essencial do preceito bíblico. É que, com uma interpretação antijudaica dos evangelhos, corrompeu-se o ensino do Mestre e, com isto, viemos a perder a importância do descanso semanal a ponto de hoje em dia poucas vozes clamarem contra a lesiva permissão de todo o comércio abrir as suas portas de segunda à segunda.

Nossos massacrados trabalhadores, desde uma medida adotada no governo FHC, viraram escravos de seus patrões a ponto dos funcionários das padarias e dos supermercados nem sempre desfrutarem de um final de semana com a família. Por isso, temos hoje um preocupante sentimento de mal estar e de insatisfação na sociedade brasileira capaz d propiciar um clima de desequilíbrio social no país.

Creio que, sendo Jesus judeu, jamais ele pretendeu revogar o descanso sabático. Não foi sua proposta que hoje enchêssemos a agenda de atividades no dia que se destina ao repouso coletivo, o qual precisa ser fixo numa coletividade. Porém, o Mestre deixou claro que não devemos nos omitir em praticar o bem quando este precisa ser executado em seu devido momento. E aí cabe ao discípulo transgredir as concepções construídas sobre o cumprimento de um preceito para que a Lei divina, em seu ponto mais elevado, seja amorosamente cumprida.


OBS: A ilustração usada neste texto refere-se a um quadro do artista francês James Joseph Jacques Tissot  (1836-1902), pintado entre 1886 e 1894, onde ele retrata os conflitos experimentados entre Jesus e os fariseus. A obra encontra-se no Museu do Brooklyn, Nova York. Capturei a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Brooklyn_Museum_-_Woe_unto_You,_Scribes_and_Pharisees_(Malheur_%C3%A0_vous,_scribes_et_pharisiens)_-_James_Tissot.jpg

Comentários

  1. ótima reflexão, Rodrigo. Jesus recolocou o shabat na perspectiva correta.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Eduardo. Além de ter recolocado o Shabat na sua correta perspectiva, o Mestre mostrou que a interpretação das Escrituras não deve perder de vista certos princípios basilares que podem ser expresso pelo amor. Este seria hoje a dignidade da pessoa humana que tá lá na nossa Constituição Federal.

      Excluir

Postar um comentário