O colunista da Folha – Contardo Calligaris —,é também psicanalista de formação Lacaniana(especializou-se na França). Tenho dois livros dele (Quinta Coluna e Terra de Ninguém) composto de crônicas que publicou na Folha de São Paulo. Ele se vale dos temas incisivos do nosso cotidiano, para extrair sutilezas de cunho psicanalítico: análises tão cruas e imparciais que às vezes nos choca, por exatamente nos tirar daquele lugar comum ou zona de conforto que escolhemos para não ser incomodados. Hoje, quinta-feira (dia 15), ele fez em forma de crônica, uma reflexão curta e profunda sobre o humor em face do que é considerado sagrado pelos fundamentalistas religiosos.
Com o intuito de trazer
mais subsídios para quem deseja se debruçar sobre o humor satírico versus o que se racionaliza
como sagrado, replico aqui, com os devidos créditos, o artigo que Contardo Calligaris publicou, hoje, no
caderno “Ilustrada” da Folha de São Paulo:
[Link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/203994-por-que-eu-sou-charlie.shtml ]
Queria estar na grande marcha de
Paris no domingo passado. Cogitei seriamente pular num avião sexta à noite, de
Nova York; mas não deu.
Nunca gostei de reuniões de
massa, nem nos anos 1960. Mas, sem saber bem por quê, pensava que não estar nas
manifestações destes dias seria um pouco perder o "trem da história"
(justamente nos anos 1960, a gente acreditava que esse trem existia).
De qualquer forma, melhor assim.
Estive no pequeno "rally" de sábado, na Washington Square, em Nova
York (por volta de mil pessoas). Foi menos empolgante do que seria a maré
humana na Place de la République e, por isso mesmo, pôde ser um momento de reflexão.
Cantei a "Marseillaise"
mais vezes numa tarde do que nos últimos 30 ou 40 anos de minha vida,
descobrindo que 1) me lembrava de todas as palavras, 2) meu ouvido musical só
piorou com os anos.
Cantei como homenagem à França
ferida e como hino das ideias que a França encarna para mim, ou seja, não
apenas as grandes ideias das luzes do século 18, mas também (se não sobretudo)
ideias mais antigas e aparentemente menos nobres: as da tradição libertina e
pornográfica e as do espírito gozador da revolta da Fronda (o estilingue) do
século 17.
Na Washington Square, chamamos os
nomes das vítimas, Charb, Cabu, Wolinski...
Não tinha trazido comigo o cartaz
que muitos levavam, "Je suis Charlie", em várias línguas. Mas tinha
um lápis Palomino Blackwing, que ficou na minha mão, apontado para o céu, o
tempo inteiro. Caneta, lápis, hidrocor erguidos eram o jeito de dizer que
ninguém pararia de escrever ou desenhar livremente.
Na mesma veia, de vez em quando
surgia um coro: "Não temos medo" --sobretudo na boca das inúmeras
crianças. Era um conforto que houvesse tantas crianças --as crianças europeias
e americanas vão (são levadas) para cada tipo de manifestação política, mesmo
potencialmente perigosa. Como disse uma vez meu pai, ir a uma manifestação pode
ser perigoso para uma criança, mas não ir seria muito mais perigoso para seu
futuro e para seu espírito.
Por que eu estava lá? Não sou
mais leitor de "Charlie Hebdo" há tempos. E nunca fui um assíduo.
Isso era provavelmente o caso da maioria naquela tarde.
O que nos reunia, então? Um gosto
pela sátira? Uma convicção política? Era uma reunião a favor do casamento gay?
Por ou contra a descriminalização do aborto ou da maconha? Por ou contra a
corrupção? A favor da democracia direta?
Nada disso. A princípio, não
tínhamos nada em comum, nada que fosse para todos os manifestantes um valor
compartilhado.
Nada em comum --salvo o atentado
contra "Charlie Hebdo". E "Charlie Hebdo" é o quê?
Escutei de tudo nestes dias, até
alguns (que nunca leram a revista) dizendo que é uma publicação islamofóbica.
"Charlie Hebdo" é uma publicação cretinofóbica, porque acha cretino
qualquer um que adira a uma crença sem a capacidade de rir dela e de si mesmo
enquanto crente. Por isso, seria exato dizer que, para "Charlie
Hebdo", nada é sagrado.
Por isso, o espírito de
"Charlie" tem a vida difícil diante da sedução dos fundamentalismos,
que vendem certezas e sentido pelas nossas ruas.
Agora, será que
"Charlie" peca e cansa por sua descrença generalizada? Suprema
acusação: será que "Charlie" é cínico?
Eu mesmo talvez dissesse que sim,
até a reunião da Washington Square --que não era uma reunião de cínicos. Ao
contrário, era a reunião dos que acham que nada é sagrado para todos, SALVO o
princípio de que nada deve ser sagrado para todos. O que não é pouca coisa.
Talvez, no futuro, o atentado a
"Charlie Hebdo" faça história por ser o momento em que a gente
começou a entender que o que nos define não é a ausência de valores absolutos,
mas é, sim, um valor específico: a recusa de que valores sejam aceitos e reconhecidos
como absolutos.
Alguns dizem que sem valores
absolutos e intocáveis em comum não há sociedade possível. Pois bem, há uma
sociedade possível, constituída ao redor do valor absoluto seguinte: não há
valores absolutos para todos.
Agora sei por que fui à manifestação.
Ela foi a prova (efêmera, claro) de que é possível se reunir para dizer que só
nos reúne a convicção de que, para se reunir, não é preciso que a gente
compartilhe uma certeza absoluta. Corrijo: para se reunir, é MELHOR que a gente
NÃO compartilhe uma certeza absoluta.
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