Apocalíptica




Por Eduardo Medeiros



Os tempos da Guerra Fria foram tempos apocalípticos. O mundo vivia numa tensão diária por conta da polarização de forças políticas e econômicas entre o Império Americano e o Império Soviético. Por mais de uma vez, o mundo esteve a beira de uma guerra atômica, como no episódio da crise dos mísseis em Cuba, uma guerra que se fosse deflagrada, não haveria vencedores, só perdedores, pela imensa capacidade dos oponentes se autodestruírem, levando consigo, o mundo todo.


Existe um gênero literário forjado no antigo Israel - a Apocalíptica -  que é fruto desse estado de tensão destruidora, que sempre foi uma sombra na história do povo bíblico. A grande maioria dos livros apocalípticos foram escritos no chamado "período intertestamentário", que compreende mais ou menos os anos de 250 aC a 100 dC. Tais livros não podem ser bem compreendidos fora das circunstâncias religiosas, políticas e econômicas da época; tempos em que a esperança e temores do povo de Israel estavam à flor da pele. Segundo D.S. Russell, "A literatura apocalíptica é essencialmente literatura de um povo que não via nenhuma esperança para sua nação simplesmente em termos de política ou no plano da história"(p 35).

Foi um movimento literário e histórico judaico cujo temática era  a iminente convulsão social e terrena em grandes catástrofe cósmica com o ápice do curso predeterminado da história; nesse contexto, os "anjos as nações" desempenham um grande papel nesse drama cósmico.  O período de tempo mencionado, viu a enorme expansão da cultura grega que tinha começado com Alexandre Magno (336-323 aC) e continuado com seus sucessores; a apocalíptica judaica é em grande parte, um protesto contra muito dos valores que o helenismo representava.

As características principais dos escritores apocalípticos demonstram que eles se viam cercados por "outro mundo", cósmico, além do mundo presente, onde Deus morava na companhia de seus santos anjos. Deus era o "o Altíssimo", "o Antigo dos Dias", "o Senhor dos Espíritos", "o Transcendente" que habita o reino da luz; esse Deus controlava os destinos dos homens e das nações, que no fim julgaria todas as criaturas vivas e levaria todas as coisas à consumação. Mas havia um jeito de fazer uma ponte entre o mundo material e esse "outro mundo", ponte essa que levavam não somente à presença de Deus mas também aos segredos divinos. Duas das mais importantes "pontes" eram as visões em sonhos com suas viagens ao outro mundo e a mediação dos anjos.

Os escritores deixavam transparecer sua grande admiração por terem se tornado recebedores dessas revelações, de terem adentrado aos mistérios de Deus. A mediação de anjos é importante no gênero apocalíptico. Os anjos faziam uma dessas pontes entre o "lá e o cá". Na história do AT sempre podemos ver aparições angelicais, mas nos escritos posteriores a ele, "realçou-se enormemente este papel, sem dúvida refletindo influência de crenças persas e ilustrando ainda mais a evolução do pensamento dualista dentro do judaísmo em seu conjunto" (Russel p 143).

Essa ideia dos "dois mundos" pode também ser entendida como "duas dimensões" de tempo e espaço. J.J Collins definiu "apocalipse" como uma "forma de literatura revelatória que desvela um realidade transcendente que se deve entender em duas dimensões: é temporal (visando à salvação escatológica) e espacial (envolvendo outro mundo sobrenatural)" (Russel, p 144). Assim, no livro de Daniel, o Reino Celeste transcendente abala, na forma de de grande pedra cortada "por nenhuma mão" de uma montanha, todos estes reinos (reinos históricos) e os leva ao fim. (Dn 2.44); isso quer dizer que os valores transcendentais não estão escondidos em algum canto celeste, mas tem incidência visível na realidade desta vida, em suas políticas de tirania e opressão. No mesmo livro de Daniel capítulo 10, os "príncipes", que se referem aos anjos da guarda da Pérsia e da Grécia se confrontam com Gabriel, o anjo intercessor de Israel, companheiro do "príncipe" Miguel: "As batalhas combatidas por eles 'lá em cima' refletem e são determinantes das batalhas combatidas pelos homens e pelas nações 'daqui embaixo' ! (Russel, p 144).

Concluindo, a literatura apocalíptica nasce da crise; nasce da situação histórica de Israel oprimido pela cultura grega e depois, no apocalipse cristão de João, na situação de perseguição por Roma. A visão de mundo da época, constituído pelas duas dimensões e pelo dualismo, vê no cenário terrestre o teatro de operações dos guerreiros celestes. Era exatamente esse clima apocalíptico que imperava nos tempos de Jesus, quando a "esperança de redenção do reino de Israel" estava na ordem do dia. Jesus de Nazaré, com certeza, não deixou de ser influenciado pela apocalíptica do seu tempo; ele também se via no plano terrestre participando de um drama maior, cósmico; sua chegada era a chegada do Reino Transcendente de Deus ao nível do imanente terrestre; uma das frases atribuídas a ele deixa essa perspectiva bem clara: "Eu via Satã caindo do céu" - os tronos da maldade e da opressão estavam caindo diante do Messias de Javé. Mas como sabemos, hoje, de uma ampla perspectiva histórica, parece que Satã caiu do seu trono mas depois voltou a tomá-lo de volta. A tão esperada redenção de Israel não veio pelo Messias Nazareno, que morreu perplexo pelo fracasso do seu intento; "Deus meu, por que me desamparaste", o clamor na cruz, lamenta o abandono de Deus ao "Projeto do Reino". Outra vez, precisava-se da Esperança; os seguidores do Nazareno postergaram o Reino para um futuro ainda incerto. Mas, nas palavras de Albert Schweitzer, Jesus colocara a grande roda da história para rodar, mas por fim, foi esmagado por ela.

Comentários

  1. O tema que me propus analisar é vasto, e eu não seria maluco de escrever uma "dissertação de mestrado" para publicar aqui; apenas pincelei alguns poucos pontos dessa tradição literária judaica que eu aprecio, pelos seu temas mitológicos como as guerras cósmicas entre seres espaciais do bem e do mal.
    Do ponto de vista histórico, a apocalíptica nos mostra o que o imaginário religioso judaico foi capaz de produzir, diante de situações de opressão e perigo, onde apenas o seu Deus, era a sua esperança.

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  2. Os escritos de víeis “apocalípticos” sempre se originaram em momentos de intensa crise humana interna e externa. Como você, Edu, bem explicitou: a literatura apocalíptica nasce sempre de uma situação histórica de crise

    Contextos de perseguições, catástrofes existem em todas as culturas. No cristianismo, a concepção da vinda de um messias cujo Pai (Javé) condenaria os inimigos e premiaria os que O aceitassem na figura de seu filho, adquiriu uma tonalidade muito cruel, como a de um poder divino que aniquilaria os “rebeldes” ou “hereges”. Nesse corolário, o clamor pela justiça divina seria mais a expressão de um desejo de vingança por parte dos adeptos de Cristo, contra, possivelmente, os judeus não convertidos da elite judaica-romana que no imaginário cristão da época, eram vistos como opressores e por isso, deveriam receber o seu “merecido castigo”.

    A nova concepção religiosa de um homem-deus que morre para redimir a humanidade, imbuiu nos primeiros cristãos a esperança de que a sua fé seria recompensada dentro de sua própria geração. João, em sua visão, clamava impaciente: “Até quando ó Deus, não vingarás a morte dos santos!!!”

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    1. Caro Levi,

      Em minha análise, o Apocalipse seria um dos livros do NT com menos anti-judaísmo e a ideia da divinização do Messias não se acha tão fortemente embasada ali. Mas realmente nota-se a oposição a algum grupo judaico (seria essa elite a "sinagoga de Satanás"?) e mais ainda contra Roma. E, em termos históricos, o Apocalipse de São João evidencia uma resistência grega anatoliana à Roma que é a tal besta que sobe do mar com suas "sete cabeças" (os sete montes da cidade).

      Realmente o Cristo apocalíptico expressa o anseio por justiça dos cristãos oprimidos naqueles tempos.

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  3. Caro Edu,

    Não nos esqueçamos que JESUS RESSUSCITOU e está vivo à direita de Deus Pai.

    Aparentemente, ele foi esmagado pela roda da história cronológica, mas, se pararmos para analisar os fatos de uma outra perspectiva veremos que o Espírito do Messias permanece conosco incentivando cada vez mais pessoas a lutarem contra as injustiças. Eu mesmo me sinto motivado pelo Espírito, embora não esteja totalmente entregue ao seu mover devido ao meu apego a coisas terrenas.

    Na época da Reforma Protestante, Lutero chegou a duvidar da autenticidade do Apocalipse. Porém, como não reconhecermos como inspirado um livro que serviu de ânimo para tanta gente no passado continuar resistindo à opressão romana?!

    Certamente que a literatura apocalíptica tem também a contribuição humana junto com a inspiração divina e isso eu não nego. Ela não deixa de ser uma expressão dos sentimentos de um povo que por muitas das vezes se sentiu materialmente impotente para lutar contra a tirania e, assistindo seus líderes e familiares sendo presos, torturados e mortos, conseguiram ter fé olhando para além do horizonte. Viram que a existência é algo muito mais amplo que essa nossa época e do que a fisicalidade. Aliás, o mundo físico estaria contido no espiritual e a presença de anjos e demônios no Apocalipse pode significar hoje as atividades das consciências extrafísicas que atuam no Universo. Umas fazem o bem e outras o mal.

    Sem dúvida que estamos vivendo uma batalha cósmica e poucos são os que dão conta.

    "Bem-aventurados aqueles que lêem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo." (Ap 1:3; ARA)

    Quem lê, entenda-me. (rsrsrs)

    Abraços.

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  4. Rodrigo, eu não sei se Jesus ressuscitou e foi sentar-se no trono ao lado de Deus. Pelo menos historicamente me é impossível sabê-lo. Deixo essa afirmação como uma regra de fé. E nesse texto eu quero apenas apontar que houve um movimento literário que se originou de um tempo de crise em Israel, e que tal literatura foi escrita conforme a visão de mundo e na linguagem simbólica e mítica que é peculiar nos povos da antiguidade. Só queria comentar sobre a historicidade do movimento e não sobre a veracidade do seu conteúdo literário.

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    1. Eduardo,

      Eu só não sei como foi que Jesus ressuscitou, visto que desconheço a natureza dos corpos espirituais. Porém, a eternidade da alma me parece algo quase que concreto (rsrsrs). E aí suponho que aos discípulos foi dada a oportunidade de terem visões espirituais do Mestre durante aqueles quarenta dias que podem ter sido simbólicos assim como são simbólicas as narrativas sobre a ressurreição. Todavia, tal simbolismo não mata o significado do Cristo ressurgir dentre os mortos. Muito pelo contrário!

      Compreendi quando se referiu à historicidade do movimento apocalíptico na literatura judaica e cristã também. Entretanto, quero ressaltar sobre a importância que aqueles textos tiveram na época e que serviram de ânimo e de incentivo aos leitores.

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  5. E falando em trono, eu sempre fiquei pensando quantos tronos tem no céu, se um só ou se dois, ou se ainda três.

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    1. É mais uma linguagem simbólica, amigo. Importante é que Cristo reina!

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  6. Eu sei, amigo Rodrigo, que tudo é linguagem simbólica; ms será que "Cristo Reina" também não é linguagem simbólica? rss

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    1. Deve ser o sentimento "religa-re", que na cultura ocidental tem o Cristo como símbolo arquetípico.

      Segundo Jung, o mito da morte e da ressurreição de Cristo formam um arquétipo que vive não apenas na psique individual, mas também na coletiva. Claro que essa percepçao é a do mundo ocidental, que estamos inseridos.

      Não sei se o Rodrigo, nesse ponto, há de concordar comigo. (rsrs)

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    2. Também acredito que a declaração de que Cristo reina, como ocorre na sétima trombeta (Ap 11:15), também se reveste de um simbolismo para o nosso momento (e o tempo do autor do Apocalipse). Hoje vemos tragédias, criminalidade solta e governos ruins oprimindo o povo. Porém, a crença de que Cristo reina nos dá um ânimo atemporal para escrevermos a história. E aí não há como desvincular esse simbolismo da crença num futuro em que haja a desejada paz sem fim. A esperança de que estaremos todos reunidos na eternidade e que, mesmo com a nossa morte, a história será escrita conforme a soberania de Deus. Afinal, Cristo reina!

      Sobre o que o Levi colocou, acredito de certa forma que o sentimento do religare está essencialmente à fé no Cristo ressurreto. Nos relatos sobre a aparição do Senhor, ele não aparece mais a todos, mas apenas aos seus discípulos (apóstolos e outros seguidores). As autoridades que o mataram não tiveram essa oportunidade de vê-lo. Assim, pode-se dizer que a compreensão íntima de morrer e ressuscitar encontra-se disponível apenas aos que passam pela experiência da conversão. Trata-se de morrermos e ressuscitarmos com Cristo, isto é, a nossa identificação com a sua morte e ressurreição. Não se opera o religare enquanto o pecado estiver ocupando espaço no nosso coração. A fidelização ao Evangelho acontece junto com o arrependimento.

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